A construção de um Brasil justo, fraterno e com menos desigualdade social e de renda exige a superação dos problemas relacionados ao modelo agrário brasileiro. O agronegócio é um sistema econômico e político concentrador de produção, riquezas e renda no meio rural. Ele é o responsável pela exclusão de várias categorias de agricultores, gerando inúmeras situações de violência.
Atenta a esta realidade, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou no ano de 2014 o documento 101 “A Igreja e a questão agrária brasileira no início do século XXI”. De acordo com Leonardo Ulrich Steiner, Secretário Geral da CNBB, o objetivo deste documento é “confirmar a exigência e a necessidade de ‘se chamar continuamente a atenção para os princípios de justiça, particularmente o princípio da destinação universal dos bens’”.
Nos dias 06, 07 e 08 aconteceu, em Carnaíba do Sertão (Juazeiro/BA), um encontro diocesano de formação destinado a apresentar, debater e estudar o documento 101 da CNBB. O facilitador do encontro foi frei Luciano Bernardi, que faz parte da coordenação colegiada da Comissão Pastoral da Terra (CPT) da Bahia e também da coordenação nacional.
CNBB e a Questão Agrária
Em 1980, a CNBB lançou o documento “Igreja e Problemas da Terra”, onde fez, pela primeira vez, a distinção entre terra de negócio e terra do trabalho. Este documento veio “em resposta aos muitos clamores dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, vítimas de um processo de modernização da agricultura que os governos militares puseram em curso, sem levar em consideração os compromissos de reforma social que formalmente assumiram no Estatuto da Terra” (Doc. 101, parágrafo 1)
Em março de 2006, foi lançado o documento, pequeno e muito denso, “Os pobres possuirão a terra”, que contou com o aval de “112 bispos das Igrejas católica, anglicana e metodista e pastores sinodais da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil”. “A CNBB não foi contra, divulgou o documento e não fez nenhum boicote. Mas ela ainda não se sentia em grau de assumir este documento e de apoiar a realização desta reflexão e de sua publicação. Porém, admitia que era necessário se fazer uma reflexão”, destacou frei Luciano.
Finalmente, na páscoa de 2014, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil apresentou o documento “A Igreja e a questão agrária brasileira no início do século XXI”, com o “propósito de fazer a leitura da realidade agrária brasileira nas condições históricas atuais, com todo rigor, mas principalmente observando-a como Pastores do Povo de Deus, a partir de uma perspectiva baseada em princípios éticos que justificam nossa palavra a respeito desse assunto grave, motivada pela profética e evangélica opção pelos pobres e orientada pela defesa da destinação universal dos bens da natureza, com respeito ao seu usufruto, de acordo com a Doutrina Social da Igreja”. (Doc. 101, parágrafo 3)
Sobre o processo de elaboração e apresentação do documento 101, frei Luciano destacou pelo menos três aspectos importantes: a) o documento expressa o anseio das pessoas da Igreja e dos movimentos sociais sensíveis à questão agrária e que apelavam para um posicionamento mais claro da Igreja a respeito do tema b) o documento é fruto de um longo debate que envolveu vários setores da Igreja, técnicos e cientistas sociais e c) a elaboração documento foi feita a partir do método do “ver, julgar e agir”, isto é, à luz do Evangelho, iniciar qualquer reflexão a partir da observação e compreensão da realidade concreta, apoiando-se na contribuição de vários sujeitos históricos, instituições e pessoas.
Segundo Leonardo Steiner, “A Igreja e a questão agrária brasileira no início do século XXI será um instrumento de trabalho, animação e de orientação para as nossas comunidades. Os movimentos e grupos sociais, que lutam pelo direito à terra e pelo cuidado dela, encontrarão no documento inspiração e ânimo para perseverar no caminho do serviço aos irmãos e irmãs”,
Estrutura do documento 101
O documento “A Igreja e a questão agrária brasileira no início do século XXI” é dividido em três partes. A primeira faz uma análise da atual situação agrária do Brasil, destacando as consequências do agronegócio para os povos da terra, das águas e das florestas. Pela primeira vez na história os bispos do Brasil se posicionam contra o agronegócio.
Esta parte traz ainda os clamores desses povos: indígenas, quilombolas, sem-terra e assentados, ribeirinhos e pescadores, produtores familiares, moradores das periferias das cidades, dos assalariados e trabalhadores em situação análoga à escravidão, além dos clamores da Terra.
A segunda parte é muito importante, porque trata da fundamentação teológica, bíblica e evangélica que orientou os bispos na elaboração e apresentação deste documento. Apoiados, sobretudo, em Ex. 3, 7-8 (“Tomei conhecimento dos sofrimentos de meu povo, desci para libertá-lo e fazê-lo sair para uma terra boa e espaçosa”), o documento ressalta que “a história do povo de Deus é marcada pela fidelidade à aliança entre Ele e o povo sofrido. Aliança que se manifestou nas três ações divinas: o Deus que vê, ouve e conhece as angústias e sofrimento dos oprimidos; o Deus que desce para dar-lhes terra, vida e liberdade e o Deus que envia seus profetas com a mesma missão de defender a vida do povo sofrido”.
Na terceira e última parte do documento, os bispos falam de sua ação evangelizadora e compromisso social. Posicionam-se com clareza em relação ao agronegócio, ao trabalho escravo, à defesa da natureza, aos cuidados com a água e à produção de energia. Dirigem sua palavra de Pastores do Povo de Deus aos povos da terra, das águas e das florestas, aos empreendedores e administradores do bem comum, ao Poder Executivo, ao Poder Legislativo, ao Poder Judiciário e ao Ministério Público.
Apesar do documento mostrar uma realidade agrária dura e cruel, apresenta também vários sinais de esperança, como, por exemplo, a diversificação da produção, a existência de novos métodos e técnicas agroecológicas, a utilização do trabalho familiar e formas de cooperação interfamiliar e a defesa dos direitos à “terra de trabalho”.
Papa Francisco
Durante o encontro de formação, frei Luciano destacou a atuação do papa Francisco à frente da Igreja Católica e o apelo que ele faz por uma Igreja missionária, de saída, acolhedora, profética, que dialoga e que faz opção preferencial pelos pobres na luta contra as estruturas de opressão e pobreza. Apresentou e leu trechos do discurso que o pontífice fez no Encontro Mundial dos Movimentos Populares, realizado entre os dias 27e 29 de outubro de 2014 no Vaticano.
Nesse discurso, papa Francisco falou sobre a reforma agrária e a importâncias dos movimentos populares ligados a questão da terra. Apelou para que nenhuma família fique sem casa, nenhum camponês sem terra e nenhum trabalhador sem direitos. Dirigindo-se aos movimentos populares afirmou “vocês não se contentam com promessas, também não esperam de braços cruzados. Vocês sentem que os pobres querem ser protagonistas”. E, em seguida, arrematou “terra, teto e trabalho são direitos sagrados. E se eu falo isso, tem gente que acha que o papa é comunista. Não entendem que o amor está no centro do Evangelho”.
Sobre a reforma agrária, o papa disse que ela é uma necessidade política e uma obrigação moral. Mas destacou que é preciso que os movimentos em defesa da terra se mobilizem. “Como é lindo quando vemos em movimento os Povos, sobretudo os mais pobres e os jovens. É um vento da promessa que aviva a esperança de um mundo melhor. Que esse vento se transforme em vendaval de esperança”.
Frei Luciano lembrou que “pela primeira fez um papa acolhe os movimentos sociais, respeita a sua autonomia e os encoraja a serem construtores de uma nova maneira de movimentar o povo, de se relacionar e de não aceitar certo tipo de manipulação que acontece também nos movimentos sociais”. Afirmou também que as palavras do papa já eram ditas na América Latina pelos melhores teólogos da Teologia da Libertação.
Avaliação do encontro
Os participantes consideraram o encontro bastante oportuno, necessário e participativo. Foi um momento de formação de mentalidade, debate de ideias e construção de pensamento. Para os presentes, a assessoria de frei Luciano fez recordar as várias vezes que Paulo Freire assessorou encontros de formação em Carnaíba do Sertão. João Bosco, membro da Pastoral da Comunicação da paróquia de Uauá, afirmou que o encontro foi “um momento muito rico e muito forte”. Ele destacou a hora em que foram colocadas as alegrias, as esperanças e as conquistas do povo nestes últimos anos, como, por exemplo, as “conquistas da água, as cisternas, as fontes alternativas, a organização do povo nos Fundos de Pasto, a proteção da terra contra os grileiros, muitas políticas públicas que o governo adotou e que nasceram de iniciativas da Igreja”.
Frisou-se a necessidade do povo comprometer-se mais com as iniciativas da Igreja, a exemplo do Projeto de Lei de Iniciativa Popular sobre a Reforma Política, que conta com o apoio da CNBB e que está na fase de coleta de assinaturas. Em muitas paróquias as pessoas se recusam a assinar o projeto, seja por falta de interesse, seja por que tem medo de perder algum benefício social ou até mesmo por falta de comprometimento com um tema de extrema importância para o país.
Aliás, a luta por uma reforma do sistema político brasileiro que permita mais participação popular, melhore a democracia representativa e garanta a diversidade e pluralidade da cultura e sociedade brasileira é fundamental para a concretização das pautas apresentadas pelo documento 101 da CNBB. As eleições estão ficando cada vez mais caras e as empresas acabam elegendo seus representantes, que quase nunca têm compromissos com as demandas do povo.
Avaliou-se também que é preciso e urgente o empenho de todos e todas na luta pela democratização dos meios de comunicação. A grande mídia brasileira está concentrada nas mãos de poucas famílias e repercute, em seus espaços, a visão de mundo da elite e o pensamento neoliberal, descompromissado com os interesses dos índios, negros, quilombolas, ribeirinhos e moradores das periferias das cidades.
A luta é árdua, porém o povo que se organiza e se mobiliza é capaz de grandes conquistas, porque, como afirmou um dos participantes do encontro, “Deus age quando o povo age”.
Encaminhamentos
Foram definidos vários encaminhamentos. Dentre eles, podemos destacar:
·Mobilizar o povo nas paróquias para a coleta de assinaturas do projeto de lei de iniciativa popular sobre a reforma política, elaborado pela Coalização pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, cujo objetivo é afastar o abuso do poder econômico, racionalizar o sistema eleitoral, promover a inclusão política das mulheres e demais grupos sub-representados e favorecer o uso dos mecanismos da democracia direta.
·Utilizar os vários meios de comunicação, como, por exemplo, rádios comunitárias, blogs, redes sociais para divulgação do documento “Igreja e questão agrária brasileira no início do século XXI”;
·Divulgar o documento também nas festas de padroeiros e durante o “Grito dos Excluídos”.
Toda essa movimentação será facilitada se a Igreja começar a “falar a mesma língua”, afinando seu diálogo em todos os lugares, seja no campo ou na cidade, e envolvendo-se cada vez mais com os problemas comuns e importantes das comunidades e do país.
Informações: Pascom-Remanso, texto Marcos Paulo, foto Pascom-Diocese.
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